Angélica
Sátiro
educadora e autora de livros nas áreas de educação,
filosofia e arte. É doutoranda na Universidade de Barcelona e investiga as
relações entre criatividade e ética.
satiro@telefonica.net
Sobre
o título
A
las mujeres sólo se las debiera aplicar en los trabajos domésticos, se las
debería alimentar, y vestir bien, pero no mezclarlas en la sociedad ni
instruirlas en la poesía y la política; no leer más que los libros de cocina
y de religión, además de música, dibujo, baile, y también un poco de
jardineo y labores del campo de tiempo en tiempo.
(Arthur
Schopenhauer - El amor, las mujeres
y la muerte)
Ou
esse título é muito hermético ou trata-se de alguma elucubração sobre
jardinagem – pode pensar o leitor. É possível que apenas se esteja seguindo
a sugestão de Schopenhauer contida na citação inicial...
Uma
vez que esse texto serve de base para a conferência: Resistència
i valors feministes avant la globalització, devemos deduzir que essas
palavras nada mais são do que estimuladores de nosso raciocínio analógico.
Afinal, entendemos que as metáforas conduzem a distintas interpretações e a
ética necessita do raciocínio analógico se não quiser ficar apenas no nível
dos princípios universais. E como discurso ético enunciado nesse artigo,
pretende se juntar à nossa ação que é singular e contingente, vejamos o que
queremos dizer com essas imagens.
Começamos
pelas palavras reflexão tênue : Esse texto pretende enunciar um caminho que não
se esgota nele mesmo, por isso a reflexão
é tênue, é frágil. Não tem a força das certezas finais e das convicções
indubitáveis. Pode ser inclusive, que apenas sinalize uma intuição, não
sendo totalmente consistente. Uma intuição que, a nosso ver,
merece ser enunciada, ainda que não esteja de todo elaborada.
Quanto
ao bambu, as flores
e as sementes, aparecem como metáforas das palavras que estão no título
da conferência : resistência e valores.
O
bambu é a imagem para a resistência que queremos enunciar, uma vez que é algo
que tem flexibilidade e que se curva sob a pressão do vento, sem deixar de ser
ele mesmo. O bambu segue sendo bambu em seu movimento. Ele é o símbolo da
resiliência: do movimento flexível que resiste, mas sem perda de identidade.
Ver
os valores como flores e sementes, significa vê-los como algo que tem o
potencial da gestação e a capacidade de dar seqüência à vida, além da
beleza necessária para inspirar as
ações.
Ou
seja, o título assume que esse texto é uma reflexão que permanece em aberto
sobre um tipo de resistência que seja flexível e sobre um tipo de valores que
existem em situação “embrionária”, em época de gestação. Mas, valores
com tal ordem de força que podem dar seqüência à vida e inspirar ações
para que ela se torne mais bela.
ADVERTÊNCIA
À FRAGILIDADE REFLEXIVA
O
título da conferência faz alusão a uma série de temas que são conteúdos
específicos já pensados por distintos campos do saber, em função disso,
vamos esclarecer em qual perspectiva conceitual, os estaremos utilizando.
Primeiro, veremos qual aspecto da globalização enfatizaremos. E depois o que
estaremos abordando dentro do escopo do feminismo. E, por fim, o texto
apresentará os valores “femininos” que propõe como contrapeso para
equilibrar a dinâmica social.
A
globalização que esta sendo questionada neste texto é aquela que é entendida
como: ideologia e a ação econômica
dominante que transforma tudo num grande mercado, no qual todos os valores
passam a estar subordinados aos valores econômicos, e,
as relações de compra e de venda passam a ser referência para todas as
demais. É uma maneira de organizar a sociedade que coloca lente de aumento nas
injustiças sociais já existentes em seus “microsistemas”. Ou seja, nesse
mercado global, há uma expansão dos problemas locais e as desigualdades se
projetam em escala mundial. Como o que vale é ganhar cada vez mais, investindo
cada vez menos, compreende-se que perverteu-se o sentido do dinheiro, que
definitivamente deixa de ser visto como meio, para ser “endeusado” como fim.
A globalização é a mundialização do neoloberalismo, o que significa que o
capitalismo venceu e, além de ter vencido, massacra em escala mundial. Agora são
países inteiros que exploram outros países inteiros.
O
feminismo vem sendo visto de distintas maneiras: como uma série de pensamentos
em torno da questão da igualdade dos sexos; como um dos movimentos sociais mais
revolucionários do século XX que luta pela igualdade de direitos; ou ainda
como filosofia política. Em quaisquer dos casos, sabe-se que as polêmicas
feministas não são novas, segunda Amélia
Valcárcel, por exemplo,
existiram dois momentos históricos nos quais o tema da igualdade entre os sexos
mais causou polêmica: a ilustração sofística e a européia do século XVIII.
E claro está que no contexto da globalização, agigantou-se as dificuldades da
condição da mulher na sociedade, incluindo o contra-ataque ideológico que vem
sendo realizado às conquistas femininas. Entretanto, esse texto não pretende
tratar a questão da igualdade dos sexos e dos direitos, ainda que considere o
valor do feminismo tanto como movimento social, quanto como corpo teórico e
reflexivo. Sobre essa dimensão da questão já existe muita literatura a
respeito. E, como muito vem sendo discutido sobre a masculinização da mulher,
o que propomos é a seqüência da reflexão sobre o que Victoria Camps chamou
de feminização do homem. O que significa que estaremos falando de valores que
tradicionalmente pertenciam à cultura feminina. A ética do cuidado, a seguir
melhor explorada, é apresentada como uma ética feminina que pode ser divulgada
e contrastada com os valores veiculados pela globalização. Os homens podem e
devem compartilhar desses valores com as mulheres, uma vez que as mesmas vêm
compartilhando nos últimos anos outros tipos de valores tidos como masculinos:
coragem, espírito empreendedor, discurso, ação política, gestão, etc. Que
ninguém entenda que estaremos falando de natureza
feminina, como algo que pertence somente à mulher. Falamos de cultura
feminina que tradicionalmente esteve encerrada nos espaços privados mas que
vale a pena circular no espaço público, colocando contrapeso ao efeito que a
globalização vem causando na sociedade. Falar de cultura feminina, também
implica em assumir as diferenças dentro da diferença de gênero. Quando
colocamos a lupa, surgem distintos rostos femininos, com suas várias manifestações,
discursos, expectativas e desejos. Pode-se ver o plural das mulheres. A
pluralidade é a verdadeira condição. Mas, nessa pluralidade, percebemos
alguns elementos comuns que podem ser compartilhados.
E,
por último, que fique a advertência de que esse texto não quer tirar a importância
de fazer a reflexão sobre a situação desigual da mulher na sociedade, nem
negar que é possível seguir fazendo o discurso de defesa do gênero.
Essa questão segue como “bandeira do feminismo enquanto movimento social”.
E seguramente sobre isso, muito ainda se falará...
Ética
do Cuidado
uma
reflexão sobre as sementes e as flores
Las mujeres, al ser faltas de inteligencia,
sólo pueden ser aptas para los cuidados y educación en la primera infancia, es
que ellas mismas continúan siendo pueriles, futiles y limitadas de inteligencia. Toda su vida son como niños grandes; o
sea, un intermedio entre
el niño y el hombre, pues si observamos a una mujer, la veremos todo el día
con un niño en los brazos, bailando y cantando con él; en cambio, un hombre no
lo haría.
(Arthur Schopenhauer -
El amor, las mujeres y la muerte)
Muitos
concordam com Schopenhauer e pensam que cuidar do outro é um ato para pessoas
menos inteligentes. E, por isso tradicionalmente, nas sociedades de maneira
geral, o cuidado foi algo próprio da ação da mulher. Aos homens cabiam apenas
serem cuidados por elas. O menino é cuidado por sua mãe, o jovem, além da mãe,
é cuidado pelas amigas e pelas namoradas. O adulto que decide casar é cuidado
pela esposa. Na terceira idade, a esposa ainda que da mesma faixa etária, cuida
do homem. E, se ele é viúvo ou separado, lhe cuidam suas filhas e
netas, ou enfermeiras e empregadas. Sem falar das amantes e outros tipos de relações
“ilícitas”... Ao longo da história, a mulher vem cuidando das crianças,
dos idosos, dos enfermos e dos marginalizados. Além de cuidar da casa, da
comida, do vestuário e das relações íntimas que ocorrem no seio familiar. E,
as profissões que têm o cuidado como foco, são de maneira geral exercida por
mulheres, como a enfermagem e a educação, por exemplo. Ou seja, cuidar tem
sido um ato culturalmente feminino.
Pensemos
no cuidado feminino através da metáfora da semente. A semente é algo que se
move misteriosamente em seu interior. Existe um tipo de poder silencioso que
oculta o trabalho da semente, que somente é visto quando ela deixa de ser ela
mesma, quando se rompe, quando se transforma em flor. Há na semente um
movimento do interior para o exterior, que só é reconhecido quando o fulgor da
natureza nos brinda com suas árvores, plantas, perfumes e cores. O mesmo vem
passando com o cuidado, é uma semente no interior da cultura feminina que
quando irrompa além do espaço privado, tem poder de alterar o ambiente.
Vejamos que tipo de alteração é possível, refletindo sobre uma ética
fundada nessa semente.
Propor
uma ética do cuidado, significa considerá-lo como um valor feminino que vai
contra a idéia de um ser humano capaz de ser apenas observador imparcial,
individualista e utilitarista. É uma ética concreta que vai contra uma ética
abstrata fundada em imperativos que pretende ser universais e abarcar tudo,
negando as diferenças e os contextos. Carol Gilligan foi a pioneira a tratar da
ética do cuidado em seu livro In a different voice.
Victoria Camps foi outra a tratar do tema em seus livros: El
siglo de las mujeres
e Virtudes Publicas. Segundo Camps, a ética da
justiça é uma ética distante em relação ao indivíduo concreto e não pode
considerar vínculos sentimentais e emotivos, porque está voltada para instituições
sociais e políticas e a lei deve ser geral, imparcial e objetiva. Com certeza,
ninguém discorda dessa última afirmação, o que lembramos é que o ser humano
não precisa apenas de instituições, de leis e de procedimentos justos; mas
também de afeto, companhia, atenção e cuidado. Daí que se compreende a ética
do cuidado como complementária à ética da justiça e não como substituta da
mesma.
AS DIMENSÕES DO CUIDADO
O
cuidado não é apenas uma ação afetiva e atenciosa para com aqueles que
necessitam, como se costuma pensar no sentido comum. Vejamos em que consiste o
cuidado, atentando-nos para suas distintas dimensões.
O CUIDADO COMO COGITO – PENSAR
CUIDADOSO
Discordando
de Schopenhauer que afirma o cuidado como algo que ocupa um espaço vazio de
inteligência, recorremos inicialmente à etimologia. A palavra cuidado vem do
latim cogitatum que significa
pensamento, projeto. E cuidar vem de cogitare:
pensar, ponderar, conceber.
Ou
seja, está em seu significado, uma dimensão que em geral não é tratada nem
considerada: cuidar é pensar! Para refletirmos sobre isso, vejamos o que seria
um pensamento que possa ser chamado de cuidadoso. É um pensamento sensível ao
contexto que busca aperfeiçoar a prática, resolvendo suas situações problemáticas.
É, portanto, um pensamento pragmático e ético que busca alternativas,
antecipa conseqüências, seleciona possibilidades, averigua, observa, imagina,
faz inferências e relaciona causas e efeitos, partes e todo, fins e meios. É
pragmático porque está voltado para problemas concretos e é ético porque é
um pensamento em prol dos demais. E, concordamos com Victoria Camps, quando
afirma que pensar eticamente é pensar nos demais. (pag 75 –
siglo de las mujeres)
O
pensar cuidadoso, porque é sensível ao contexto, é também uma prática do
“partir de si”, dos juízos intuitivos que se tem para encontrar-se com o
mundo e elaborar uma perspectiva de realidade. Pode ser considerado um valor
importante diante da globalização, porque vai contra a alienação gerada pela
identificação com os produtos do próprio trabalho ou com as imagens
produzidas externamente. De novo convidamos a metáfora da semente para nos
ajudar a explicar essa idéia, o pensar cuidadoso é um pensar que faz o
movimento da semente, de dentro para fora.
Mas,
concordamos com Matthew Lipman, quando afirma que um pensamento de ordem
superior é aquele que é ao mesmo tempo crítico, criativo e cuidadoso.
Portanto, estamos ressaltando o cuidadoso, mas entendendo que ele deve ser
potencializado junto com os demais.
O CUIDADO COMO ATITUDE –
AGIR CUIDADOSO
Segundo
Maria Zambrano, A poesia vence sem humilhar
. Martha Nussbaum, no prefacio de seu livro intitulado Justiça Poética,
afirma: Walt Whitman escribió que el artista literario es um participante muy
necesario. El poeta es “el árbitro de lo diverso”, el “igualador de su época
y su tierra”. Su vasta imaginación “ ve la eternidad em hombres y
mujeres”, no los ve como “sueños o puntos minúsculos”. Esa falta de
compasión va también con frequencia acompañada por una confianza excesiva en
los métodos técnicos para modelar la conducta humana, sobre todo los que
derivan del utilitarismo económico. Tales modelos pueden ser muy valiosos en su
lugar, pero suelen resultar insuficientes como guía para las relaciones políticas
entre los ciudadanos. Sin la participación de la imaginación literaria,
afirmaba Whitman, “las cosas son grotescas, excéntricas, infructuosas”.
Concordando
com ambas as autoras, afirmamos que uma ação cuidadosa seria uma ação poética,
porque quer vencer sem que os demais tenham que perder. Pensar no cuidado como
atitude, significa vê-lo como parâmetro de uma conduta responsável, afetiva,
atenta e zelosa. O que significa, criar uma rede de relações respeitosas entre
as pessoas, entre as pessoas e a natureza e entre as pessoas e as coisas. Uma
atitude cuidadosa com a natureza, por exemplo, é aquela que busca preservar os
recursos naturais, ao utilizá-los. Ou seja, o humano ganha o que necessita da
natureza, mas não precisa destruí-la por isso. Uma atitude cuidadosa com as
coisas, implicaria, por exemplo, no
zelo com os objetos da cultura, ato que vai em direção contrária ao abuso de
recursos materiais e ao desperdício. Relações cuidadosas entre as pessoas, são
aquelas que educam, que curam, que respeitam e que amam, não apenas no mundo
privado, mas principalmente no mundo público, onde esse tipo de ”coisa parece
ser sem sentido”...
O CUIDADO COMO AFETO
Como decía Hume, es el sentimiento y no la
razón lo que mueve a los humanos. Si eliminamos el sentimiento del discurso
moral, dificilmente conseguiremos um discurso motivador de la conducta, que es,
a fin de cuentas, de lo que se trata. (...)
(Victoria Camps – El
siglo de las mujeres)
O
cuidado é visto geralmente como uma atitude afetiva de zelo para com os demais.
Ou seja, essa é a sua dimensão mais percebida. Entretanto, pensá –
lo a partir da perspectiva da ética, nos coloca alguns questionamentos. Quando
nos perguntas, por exemplo, quais
são os motivos para ser moral? – seguramente encontraremos
boas razões, mas como dizia Victoria Camps citando a Hume, os sentimentos são
“motores da conduta”. Então, por que não cultivar um tipo de afeto
cuidadoso para com os demais e tê-lo como referência de atuação? Que o
leitor não pense que estamos falando de desenvolver um tipo de atitude “água
com açúcar” nas vinte quatro horas do dia... Gregos antigos, Adam Smith e
Martha Nussbaum, por exemplo, falam da relação entre emoções, crenças e
raciocínio. E esse afeto cuidadoso, seria uma mistura de crença e raciocínio,
no sentido já apresentado anteriormente.
Considerar
eticamente a dimensão afetiva, significa, por exemplo, participar empáticamente
nas questões interpessoais e coletivas. Imaginar-se no lugar do outro, sendo um
espectador participante e compassivo. Seguramente esse tipo de atitude implica
um distanciamento de nossa confusa intensidade emocional quando estamos diante
de fatos conflituosos em nossa própria vida.
Trata-se
pois de nos transformarmos no que
Adam Smith e Martha Nussbaum chamaram de “pessoas apaixonadas pelo bem – estar dos
demais”.
O CUIDADO COMO ETHOS (MODO
DE SER)
A
palavra ethos, tem uma dupla
significação, por um lado representa um conjunto de atitudes, e por outro fala
da constituição de um modo de ser, de uma morada interior. Ver o cuidado como ethos,
implica não somente em tratá-lo, como atitude, como ato em relação ao outro
(dimensão já abordada anteriormente), mas, significa também tratá-lo como
modo de ser. E o que significa essa afirmação?
Sem
o cuidado o humano deixa de ser humano ou nem chega a sê-lo. Se não recebe
diferentes tipos de cuidado do nascimento até a morte, o ser humano não se
estrutura, definha e morre.
Martin
Heidegger (1889-1976), em seu livro Ser e
Tempo afirma: Do ponto de vista existencial, o cuidado se acha a
priori, antes de toda atitude e situação do ser humano, o que sempre
significa dizer que ele se acha em toda atitude e situação de fato.
O
humano que se compreenda como um ser no mundo em relação com os demais, com a
natureza e com a cultura, assume que necessita ser cuidadoso, porque todas essas
relações necessitam ser cuidadas para seguirem sendo.
Assumir
o cuidado como um modo de ser, implica constatar que ele precisa estar presente
nas micro e nas macro ações, desde atitudes cotidianas com os próximos, até
nas decisões que implicam conseqüências maiores. Implica voltar-se para si
mesmo, descobrir como aprender a cuidar do outro e de si mesmo, além de
deixar-se ser cuidado.
Vejamos
o exemplo de uma “mãe cuidadosa”. Ela tentará adequar os recursos que tem,
considerando as necessidades de cada um de seus filhos. Um filho não passará
fome para que o outro possa comer caviar e beber champanhe. Um filho não estará
sem roupa no frio, para que o outro possa ter um casaco de peles. Se todos
compreendem que o ser humano é um ser de cuidado, como deixarão crianças
morrendo de fome na rua? Ou ainda, como permitirão que os mais velhos, os
doentes, os imigrantes sejam marginalizados? O cuidado implica numa melhor
distribuição dos bens e numa luta pela preservação dos direitos.
Voltando
à “mãe cuidadosa”, ela não comprará as mesmas roupas para todos os
filhos, porque compreende que cada um tem seus gostos e preferências específicas.
Ela sabe ver as semelhanças e diferenças e considerá-las em suas ações.
Disso, podemos aprender que desenvolver esse “ser cuidadoso”, significa não
tratar como igual, o que é diferente; nem tratar como diferente o que é igual.
Trata-se portanto de ser um equilibrista capaz de transitar pelos contextos
distintos, sem perder o que é específico.
Segundo
Leonardo Boff, é o cuidado que permite a revolução da ternura e faz surgir um
humano complexo, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos
no universo.
APECTOS DO CUIDADO
NUTRIÇÃO
Se
o leitor fosse Schopenauer, poderia dizer: eu
não disse que essas mulheres são pueris? Depois da jardinagem, vão falar de
nutrição... Realmente, não se pode esperar muito delas!
Se
a escritora quisesse seguir conversando com Schpenhauer diria: Nutrir
é manter viva a vida, nem mais, nem menos. E isso parece ser tarefa
de qualquer ser vivo, não? Mas, esse é um diálogo que ficará para um outro texto...
Nesse
texto, a palavra nutrição aparece tanto em sentido literal, quanto em sentido
metafórico. Vejamos o que queremos dizer com a nutrição em sentido literal.
O
humano é um animal faminto, na visão do mercado global. É um ser de
necessidades que precisam ser atendidas e saciadas. Como o mercado quer
manter-se vivo e depende da fome do homem, ele a estimula, criando outras
necessidades e a sensação de vazio. E, como é “amoral”, não se interessa
pela fome real que existe no mundo, ela é o lixo. É o que sobra daquilo que
realmente interessa, que é o que ele tem para oferecer e que o mantém vivo.
Considerar
a nutrição como um aspecto da ética do cuidado, significa revisar a relação
que existe entre alimentar e consumir. Significa ponderar sobre o consumo
equilibrado e o consumismo desenfreado. Significa buscar a maneira justa de
consumir o que é necessário, evitando desperdícios e contrastando com o
movimento consumista que é potencializado pela lógica do grande mercado
global. Significa agir de tal modo que um não perca para que o outro se
beneficie. Significa ajudar a criar a abundância e não a escassez. Significa
assumir atitudes cotidianas que vão de encontro às propostas ecológicas
Metaforicamente,
esse texto entende que nutrir é alimentar o ser de conhecimento e de beleza.
Então trata-se de cuidar daquilo que bebemos e comemos, mas também daquilo que
lemos, que assistimos, que ouvimos, que falamos. Nesse sentido, nutrir é cuidar
do saber que intercambiamos com o mundo. O saber que entra e que sai de nós. É
um cuidado com a palavra, com a forma, com a cor, com o som, com o movimento. É
um cuidado com aspectos de si mesmo que merecem ser “alimentados”. Trata-se
de estar atento àquilo que se busca para se nutrir aquilo que é correto.
INTIMIDADE
Só
se pode viver perto do outro e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio se a
gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na
loucura.
(Guimarães
Rosa)
Guimarães
Rosa nos fala da possibilidade de viver perto do outro. Viver perto do outro é
o que chamamos de intimidade. Esta palavra
diz da qualidade do que é íntimo e essencial. A palavra íntimo, que vem do
latim intimu, significa o que constitui a essência de uma coisa, o
que existe de mais profundo no interior de algo ou alguém.
Na
perspectiva da ética do cuidado, a intimidade será vista com um duplo
significado, como algo que se realiza no interior de cada pessoa e como algo que
se dá entre algumas pessoas próximas umas das outras. E por que vamos falar de
intimidade em contraposição à globalização? Porque um dos desafios
“femininos” é conectar o global com o local e isso é impossível sem que a
intimidade esteja cuidada. A globalização, se levada aos seus extremos gera
uma alienação de si mesmo e um distanciamento dos demais.
A intimidade do corpo
Assumir um cuidado com a
própria intimidade, significa ser consciente do próprio corpo e cuidá-lo.
Tradicionalmente se vê a mulher mais perto do animal, uma vez que é
considerada mais instintiva e mais submergida no corpo. O corpo da mulher é
entidade finita, limitada, mas que fala. Na proposta de feminização do homem,
significaria que o mesmo precisaria assumir um cuidado com seu próprio corpo.
Pedirei licença ao
leitor, para “confessar” intimamente algo:
há algo em mim inalienável
e que demarca um território de fala. Falo de onde minha experiência feminina
me permite (partir de si), ainda que tente transcender a mim mesma, existe um
ponto de partida. E este ponto, é a experiência de maternidade. Haverá algo
mais íntimo que a relação mãe-filho? Penso a partir do corpo que sou, o ser
do corpo da mulher. Ser um corpo semente, que acolhe outra semente. Ser um
corpo-terra, que acolhe e nutre a germinação desse encontro de sementes. Ser
um corpo – canal, que permite e colabora para o rompimento do outro ser
germinado. Ser um corpo – leite, que alimenta a cria. Ser um corpo –
deleite, que proporciona prazer aos que nele vêm se encontrar. Ser esse corpo
– morada da vida, da transformação, da transmutação. Ser esse corpo tão
absurdo e tão poético, tão divino e tão animal, capaz de gritar dores de
agonia, quando parindo; e, de sussurrar baixinho gemidos, quando amando. Ser
esse corpo sonoro, suado, cheiroso, salgado e doce. Ser esse corpo tão sagrado
e tão profano, divina vida que se fez carne...
É
deste lugar que posso falar da intimidade que é ser mãe.
Sendo esse corpo sementeira, corpo hotel, corpo restaurante, corpo parque
de diversões. Corpo onde minhas filhas iniciaram o percurso de ser nesta vida.
Vieram por mim, moraram em mim, alimentaram-se em mim, brincaram em mim,
passaram por mim; e voltam para mim, quando precisam de colo.
De
que outra intimidade posso falar? À qual profundidade essencial posso me
referir? No mais, a única coisa que posso esperar é que um dia eu possa
“ouvir” discursos assim vindo da boca dos homens dispostos a enfrentar o
mistério do autoconhecimento que habita o silêncio e os gritos do corpo que
somos.
A
intimidade nas relações -
Na
intimidade, um espelha o outro e se interroga sobre si mesmo e muitas vezes a única
imagem refletida é o vazio. Permitir-se ser íntimo é um ato corajoso, porque
nesse espelhamento um vê no outro o tempo correndo e escorrendo através das
faces e das mãos, enquanto se observam e se procuram. Numa relação de
intimidade, não há como escapar do encontro consigo mesmo, porque não há
como esconder o rosto que o identifica. As máscaras tendem a ter vida curta e
deterioram-se muito mais depressa que a ação do tempo nas faces trazendo as
rugas. Muitas vezes, nas relações de intimidade, só restam as revelações e
as confissões. O outro precisa saber quem sou para saber quem ele é e vice –
versa.
O
ritmo de produção do mercado global tem sido um impedimento para as relações
de intimidade. Em função das demandas da vida moderna, boa parte dos amigos não
encontram tempo para compartilhar. Boa parte dos casais não são íntimos e boa
parte do tempo destinado à vida familiar não é íntimo. Não há como ser íntimo
de alguém sem valorizar a intimidade e sem buscar tempo para a realização
dela. Não há como ter intimidade, sem querer expressar o próprio íntimo e
sem querer ouvir a expressão do outro. Como ser íntimo sem dialogar? Sem ser
receptivo ao outro e sem saber conviver em silêncio? Ser íntimo de alguém é
basicamente ocupar-se dele e cuidar de seu bem – estar.
E
como esse aspecto da ética do cuidado pode ser um valor em tempos de globalização?
Mais, uma vez, porque contrasta com a alienação que a lógica da produtividade
gera. Rompe com mera projeção de si mesmo nos produtos do trabalho e convida
outras dimensões da pessoa para se manifestar. Considerar as relações de
intimidade como um valor, significa “devolver ao humano a humanidade que fica
perdida no ritmo frenético do mercado.
Além
disso, trasladar os aprendizados da intimidade ao âmbito público, significa
buscar que as relações sociais sejam mais diálógicas e fraternas e que se
estabeleçam vínculos de amizade e de confiança. Também significa aprender a
intercambiar, ou seja, aprender a dar e a receber. Além de aprender a praticar
ações gratuitas, uma vez que a gratuidade é um valor vivido nas relações íntimas.
Tudo isso colabora para que cada um sinta-se melhor consigo mesmo, o que tem
como conseqüência óbvia um tratamento respeitoso para com o outro, não tem
que ser diminuído em função do próprio aumento.
Sobre
o bambu e as (in) conclusões
O
que seria resistência feminina frente `a ação globalizadora? Digo feminina,
porque penso que é tanto do homem, quanto da mulher. A melhor resistência
frente ao potente processo globalizador é buscar articular o local com o
global. Ou seja, não permitir o massacre da cultura de massa e da sociedade de
consumo que homogeneiza os gostos e as necessidades.
Um
pessimista de plantão pode dizer:
-
É claro que isso não é possível,
afinal estamos mundializados culturalmente, globalizados economicamente e nossa
comunicação virtual e instantânea com todo o mundo, nos deixa reduzidos e
impotentes diante disso. É como se fosse colocar uma minhoca prá brigar com um
tubarão.
Teríamos
que dizer ao nosso pessimista:
-
Ora,
por isso utilizamos a imagem do bambu, não se trata de fazer frente a tudo isso
na mesma medida do gigante! Trata-se de aprender a mover-se como o bambu quando
tocado por fortes ventos, ele se flexibiliza, se move, não deixa de ser ele
mesmo e resiste sem quebrar por mais tempo que outras plantas de troncos rígidos.
Trata-se caro pessimista, de usar aquelas habilidades do pensamento cuidadoso:
buscar alternativas, antecipar conseqüências, imaginar possibilidades.
Trata-se de criar saídas éticas!
A
fragilidade dessa reflexão não permite que se conclua certezas. Como muito,
podemos seguir pensando no que foi sinalizado. Afinal, diante do gigante mercado
avassalador com seu ritmo stressante, por que não apostar numa ética do
cuidado, já que ela é algo que permite que se parta de si mesmo e não de
abstrações distantes e irrealizáveis?
Para
seguir (in) concluindo e mantendo a reflexão em movimento, ficam
algumas questões do prêmio nobel Saramago: Por
que criamos uma sociedade de consumo? E por que não criamos uma sociedade de
cultura ou de paz? E ficam também alguns exemplos de grupos de mulheres
brasileiras que buscam responder ao “gigante avassalador”, de dentro de seu
contexto cultural, mas buscando algum nível de transcendência. São exemplos
de resistência feminina BAMBU:
·
Mulheres
lavadeiras e cantoras do Vale do Jequitinhonha.
Essas mulheres moradoras da região mais pobre de Minas Gerais, seguem lavando
suas roupas, mas gravaram um disco com suas canções e emitem aos demais sua
mensagem de valorização cultural e do próprio trabalho.
·
Meninas
de Sinhá BH
. Grupo de senhoras da Terceira Idade, moradoras da favela do Alto Vera Cruz que
se dedicam a resgatar as cantigas de roda e os contos tradicionais e, através
deles realizam ações cuidadosas com crianças, enfermos e todos aqueles que
estão mais marginalizados e necessitados de cuidados que elas.
E
agora só nos resta ouvir poesia e aproveitar sua fala para mais uma vez,
convidar aos homens para se feminizarem, porque como diz Adélia Prado: Mulher
é desdobrável e eu sou!
Que sejamos todos desdobráveis!
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ZAMBRANO,
Maria. La razón en la sombra. Madrid:
Siruela, 1993
15-
ZAMBRANO,
Maria. A metáfora do Coração e outros
escritos. Lisboa: Assirio e Alvim, 2000
Agradecimentos
especiais a todas as mulheres que colaboraram com as minhas inquietudes
iniciais:
·
Ana
Míriam Wuensch pelo
o suporte em Hannah Arendt e a apresentação de Maria Zambrano, além dos
deliciosos diálogos na beira da piscina de água natural de Brasília
·
Myriam
Marques pelo
apoio virtual de Nova York
·
Consolação
pelas
informações do movimento feminista atual e sobre a Marcha Mundial de Mulheres
·
Tânia,
pela
bibliografia e o relato de experiências investigadas por ela em seu mestrado
sobre as mulheres de Goiás, Rio de Janeiro
·
Patrícia
Cássia Duarte, pelos
diálogos e pela informação sobre as Meninas de Sinhá
·
Rosália
Estelita Diogo, pelos
diálogos e pela informação sobre as mulheres cantoras do Jequitihonha
·
A
todas as mulheres participantes do chá
temático Mulher, criatividade e poder
que ocorreu na cidade de Belo Horizonte durante o mês de janeiro de 2001
(agradecimentos especiais ao Maurício Silva pelo total apoio ao chá e às
mulheres!)
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