MUNDOS INSPIRADOS  

CUESTIONES DE GÉNERO  

Homem.tmp


Rita Espeschit  

Poeta e autora de livros infanto-juvenis   
espechit@telus.net


O sujeito acordou, belo dia, e descobriu que tinha se transformado num objeto. Ficou em dúvida se poderia pensar no assunto ou se pensar seria atributo exclusivo de sujeitos, ainda que ocultos, indefinidos ou
indeterminados. Se ao menos tivesse se transformado em barata! Nesse caso teria futuro como personagem literário. Seria sujeito do discurso indireto ou direto. Poderia ser, na melhor das hipóteses, uma primeira pessoa. Até uma terceira pessoa seria aceitável. Mesmo no singular. Ainda que no diminutivo. Mas não: acordou objeto, e nem ao menos mulher para se consolar com a posição de mulher-objeto. Era uma situação (lingüística?) abjeta. O sujeito, aliás, o objeto, então, consultou o Celso Cunha em busca de uma identidade: seria ele objeto direto ou indireto? Procurou em vão. Nada do seu retrato nas páginas do livro. Faltavam-lhe maiores predicados. Sua preocupação começava a ficar superlativa. Discordava de seu destino - em gênero, número e grau.

Foi quando teve a idéia de buscar-se na gramática eletrônica do computador.
Vai ver ele era digital. Vai ver era artigo (indefinido?) novo nas prateleiras da grande loja das classificações. Vai ver (e, pensando nisso, ficou mais animadinho) era ele o famoso obscuro objeto do desejo. Ou,
hipótese menos alvissareira, simples objeto de diversão dos banqueiros internacionais, que brincavam de jogar as bolsas pra cima e pra baixo só pra ver quantas vezes conseguiam quicar sem deixar a peteca cair.
O objeto, então, se transformou num comando search. Digitou-se: objeto eu. Teclou no enter. E saiu fazendo "aiô", escorregando pelo disco, cavucando diretórios. Lá no fundo de um desprezado diretório TMP, cheio de arquivos temporários, o objeto sentiu um calafrio: um sujeito esquisito, rodeado de garotas de programa (que só rodavam em DOS) olhava fixamente para ele.

"Quem é você?", perguntou o objeto ao sujeito - uma situação peculiar, segundo os ditames da gramática. "Sou o sujeito orientado a objeto", respondeu o tal. O objeto, claro, não entendeu lhufas. Nem nos bons tempos de sujeito entendera qualquer vocábulo em informatiquês, que dirá agora, mero objeto de uma desinspirada crônica. "É o quê???", perguntou. "Deixa pra lá", respondeu o sujeito. Não, ele não podia deixar pra lá. Precisava saber. Com esse objetivo, o objeto já ia agarrar o sujeito pelo pescoço quando, após ouvir um "clic", sentiu uma dor aguda na nuca e começou a se movimentar, alheio à sua vontade, em vertiginosa velocidade. Olhou para cima: estava agarrado à ponta de uma seta de mouse, e era arrastado para o canto esquerdo da tela. Tentou se livrar, não conseguiu. Quando finalmente parou, percebeu, horrorizado, o
que estava para acontecer: a setinha se deslocava em sua direção, pronta para o duplo clic fatal! Ele seria aberto, suas vísceras expostas e espalhadas!

A dor da premonição foi tão intensa que, súbito, o objeto acordou. Suando em bicas, sentou-se no sofá onde tinha adormecido e descobriu-se novamente sujeito. Um grande sujeito. À sua frente, a TV ligada mostrava o anúncio com um sujeitinho fazendo entrevista de emprego, e dando pau a cada software que
o possível empregador mencionava. O sujeito deu um sorriso: então era isso. Levantou, desligou a TV. No caminho para o quarto, reparou no micro ainda ligado. Foi lá, clicou no "desligar" e no "ok". E assim que surgiu a mensagem "seu computador está pronto para ser desligado", apertou o botão.

Foi aí, então, que o sujeito desapareceu - para sempre. Ou, pelo menos, até que seja acessado novamente. O que, cá entre nós, é muitíssimo pouco provável.