MUNDOS DIALOGADOS  

CUESTIONES DE GÉNERO  

MULHERES DESDOBRÁVEIS[1]

Num importante jornal europeu, saiu há pouco tempo um anúncio que pretendia vender um determinado tipo de eletrodoméstico. Nada mais comum que isso, o único problema era a foto utilizada naquele anúncio. Em primeiro plano estava um homem com uma faca ensangüentada na mão. No segundo  plano, estava uma mulher seminua, na cama, de bruços e com sinais de esfaqueamento. No corpo do texto algo semelhante à seguinte mensagem: quem disse que ela podia não querer o eletrodoméstico ...? Ao lado desse anúncio, havia a declaração de alguma ONG feminista que criticava o anúncio ao mesmo tempo em que divulgava as alarmantes estatísticas da violência doméstica de homens contra suas esposas na comunidade européia. Algumas páginas depois, uma reportagem falava que mais de 85% das mulheres do mundo árabe são analfabetas. Esse era um jornal do início do ano de 2002! Será que no ano de 2022 a situação da mulher se encontrará muito melhor que essa? Essa é a nossa esperança e nosso esforço construtivo! 
A revista CREARMUNDOS, sensível a essas questões e considerando que a maioria das pessoas que trabalham em educação são mulheres, busca tratar nesse mês a temática feminista e sua relação com a educação. Para tanto, entrevista a FINA BIRULÉS, tradutora da filósofa Hannah Arendt na Espanha, autora de livros sobre subjetividade, ação e política, coordenadora do seminário de estudos filosofia e gênero e professora de filosofia contemporânea na Universidade de Barcelona.  

Nossa conversa estará organizada em três blocos temáticos:  

1-Sobre a relação mulheres X educação

2-Sobre a educação das mulheres e a educação dos homens 

3-Sobre as mulheres pensadoras e sobre a contribuição teórica feminina

TEMA 1:

Sobre a relação mulheres X educação

CREARMUNDOS:  Você poderia nos dizer como vê a relação entre as mulheres e a educação? 

FINA BIRULÉS: Uma boa forma de começar a falar desse tema é referindo - me aos textos clássicos de Virgínia Wolf, que além de formular discursos sobre o feminino e o masculino, reclamava independência econômica e educação para as mulheres. Ou seja, uma primeira questão que considero importante de enfatizar é sobre o direito à educação a todas as mulheres do planeta. Atualmente na Europa, em função da imigração muçulmana, tem surgido o debate em torno da proibição ou não do véu que cobre o rosto das meninas que vão às escolas ocidentais. O mais importante é que essas meninas possam freqüentar a escola, tendo acesso à cultura e aprendendo a articular suas idéias e seus pensamentos. Se elas o fazem com véu ou sem ele, é o menos relevante nesse momento. Ou seja, estou de acordo com Virgínia Wolf, as mulheres precisam ter acesso à educação e isso é o mais importante.  

 

CREARMUNDOS:  Você diria que para diminuir a discriminação de gênero, é suficiente que todas as meninas tenham seu assento garantido num banco escolar?

FINA BIRULÉS: Não é suficiente, mas é um passo importante. No fundo, o objetivo da educação é transmitir um mundo. Quando educamos as novas gerações, transformamos as crianças em herdeiras de um mundo e do que queremos conservar dele. Infelizmente, a educação tem transmitido um mundo com seus preconceitos e seus esquecimentos. O preço da educação para todas as meninas é esta inclusão num suposto neutro que no fundo é masculino.  

Nas escolas de crianças muito pequenas, quando as professoras pedem para que “os meninos” abram os livros na página ... , as meninas perguntam: eu também professora? As meninas sabem que não são “meninos” e se diferenciam deles. Mas, essas mesmas meninas, quando chegam no ensino médio, já não fazem esse tipo de perguntas. Elas percebem que o mundo é masculino e que têm que adaptar – se a ele se querem seguir vivendo em sociedade. Elas não perguntam se estão ou não incluídas no mundo dirigido aos homens (e por eles!), simplesmente percebem-se incluídas nele de maneira diminuída. A linguagem ainda é muito excludente do ponto de vista do gênero.  

CREARMUNDOS: Você poderia falar um pouco mais sobre essa relação entre a linguagem e os preconceitos de gênero?  

FINA BIRULÉS: Muitos pensam que basta mudar as leis, para resolver os problemas de discriminação de gênero. Na Espanha, muitos políticos defendem a mudança das leis para resolver o problema do alto índice de violência doméstica contra a mulher. Seguramente, é importante que as leis estejam mais justas com relação a isso, mas a transformação necessária deve se dar no imaginário coletivo. Enquanto o ato de bater em uma mulher não for visto como tabu, como algo extremamente horroroso, como um “canibalismo”, a situação não muda verdadeiramente, por mais que mudem as leis. O corpo da mulher como algo a ser dominado é o símbolo que precisa ser transformado. As mudanças mais profundas se dão a nível simbólico, e a linguagem é sua grande mediadora.  

Em função da origem patriarcal de nossa cultura, a linguagem está cheia de expressões nas quais o feminino é um lugar de indignidade. Deveríamos nos perguntar constantemente: Quais são esses lugares de indignidade que estão na linguagem? Como não reproduzi-los e transmiti-los como verdades? 

 

CREARMUNDOS:  Na sua opinião, o que a professora poderia fazer para ajudar nessa mudança simbólica?  

FINA BIRULÉS:  Desde a psicanálise lacaniana que se anuncia o declive do patriarcado e como as mulheres não estão dispostas a renunciar a tudo o que já conseguiram a nível social, resta agora empreender uma ação consciente a nível simbólico. Feministas ou não todas nós seguimos mantendo a lógica patriarcal, quando reproduzimos a linguagem tal qual ela está estruturada. Esse mundo simbólico pode ser transformado, quando as professoras deixarem de considerar que essa lógica patriarcal deve seguir funcionando. E, para tanto, devem considerar como legítimo, em seu trabalho, o imaginário feminino e sua linguagem. Com certeza essa atitude é capaz de gerar a mudança simbólica que dignifica o lugar do feminino no mundo.

 

CREARMUNDOS:  Você poderia dar exemplos de ações concretas nessa direção?

FINA BIRULÉS:  Um trabalho importante refere-se aos livros didáticos, porque eles são responsáveis pela transmissão de um imaginário e um determinado tipo de linguagem. Eles são um importante meio de reprodução do mundo simbólico. A professora pode estar atenta a isso, tratando de descobrir se os livros estão passando a imagem de uma mulher débil e pouco importante, através de sua linguagem imagética e escrita.  

 

CREARMUNDOS:  No Brasil, muitas têm sido iniciativas nesse sentido. Há um trabalho consistente no que se refere à análise dos livros didáticos e suas mensagens “ideológicas”. Muitos têm sido os cuidados para que não sejam reforçados os preconceitos raciais, de gênero, religiosos e outros. Você indicaria alguma outra ação com relação aos livros didáticos e demais materiais utilizados para estudo?  

FINA BIRULÉS:  As meninas quando vão à escola ou à uma faculdade, dificilmente estudam uma mulher como se as pensadoras não houvessem existido ou como se não fossem dignas de ser objeto de estudo. Esse é um aspecto igualmente importante de ser considerado pelas professoras. É necessário que todos tenhamos consciência de que o trabalho das mulheres, se converte em noticia e não em obra, por isso a produção feminina não é transmitida como parte da cultura humana. Na filosofia, por exemplo, existem muitas pensadoras, que quando vivas, são lidas e reconhecidas, mas desaparecem porque não são transmitidas. Esse fato as condena ao esquecimento. Assim, as meninas descobrem que as mulheres não estão em nenhum livro e concluem que devem ser menos capazes, em função disso.  

Lembro-me de um caso jocoso que ilustraria bem essa questão. Uma menina de 10 anos, na época de Franco, pensou que Espronceda[2] era uma mulher, porque aparecia no livro escolar com cabelos compridos. Somente depois de completar 15 anos, pode descobrir que era um homem. Esse é um assunto importante, afinal com qual imagem de feminino, as meninas podem se identificar quando estão diante de um livro escolar?  

TEMA 2:

Sobre a educação das mulheres e a educação dos homens  

CREARMUNDOS:  Educar conjuntamente mulheres e homens diminui os preconceitos de gênero?  

FINA BIRULÉS: Há alguns anos, um grupo de pedagogas e psicólogas francesas apresentaram um estudo comparativo entre as escolas dedicadas ao ensino exclusivo de mulheres e as escolas que se dedicam à co - educação. Descobriram, entre outras coisas como as meninas advindas das escolas dedicadas exclusivamente a elas, tinham desejos e aspirações profissionais que não se reduziam a carreiras consideradas femininas, muitas se inclinavam às engenharias, matemáticas e etc. Isso é um indício de que simplesmente juntando homens e mulheres não se resolve o problema da discriminação de gênero.

 

CREARMUNDOS:  Partindo do pressuposto de que a grande maioria de escolas atuais é mista, como estar atento a uma educação menos discriminatória?    

FINA BIRULÉS: Somos constituídos pelo discurso discriminatório, sem nos dar conta disso. Um pouco de reflexão sobre nossas próprias práticas pode nos ajudar a estar mais atentos. Um professor pode buscar ser consciente de sua ação cotidiana, por exemplo, quando uma aluna e um aluno levantam a mão ao mesmo tempo: Quem é atendido primeiro? E por que?  

A mudança simbólica à qual nos referíamos é constituída desses pequenos atos cotidianos, por isso a importância de nos fazermos conscientes deles. Creio que na educação quase nada é neutro, as professoras pensam que educam igualmente a meninos e meninas e não é bem assim. Há um conjunto de micro ações que vão em direção contrária, reforçando esse mundo simbólico que remete a mulher à uma condição de inferioridade.  

Em geral, se tem a idéia de que conseguir que um sujeito seja autônomo (um dos objetivos da educação), é algo que implica num “desapego” de sua mãe. Depois do advento psicanalítico, um indivíduo muito apegado à sua mãe, é julgado como alguém que tem alguma enfermidade. Soltar-se da mãe é algo parecido com nascer à partir de si mesmo. Fala-se da importância de “matar a mãe simbolicamente” para poder ser esse “si mesmo identitário”. E esse discurso está muito disseminado no campo educacional. Com isso, a imagem das mães é muito ambígua: a mãe é protetora e amorosa, mas é muito perigosa para o sujeito, é preciso negá-la! Assim, a imagem da autoridade feminina está colada à imagem de um perigo devorador. E por que? Porque a questão da autoridade está muito inserida na cultura masculina e essa forma de autoridade feminina não é reconhecida como tal nem pelos homens, nem pelas mulheres. Afinal, nós temos muita dificuldade em reconhecer a autoridade de outra mulher. E quando se trata de autoridade intelectual isso fica ainda mais reforçado. Retorno à Virgínia Wolf que trabalhou muito para buscar suas antecessoras, contextualizando sua obra e buscando ver o que conservava e o que inovava do trabalho delas. Para mim, ela é um exemplo de mulher que honra e respeita a autoridade intelectual de outras mulheres.  

 

CREARMUNDOS:  Você poderia nos falar um pouco mais sobre a questão do poder e da autoridade?  

FINA BIRULÉS: Primeiramente gostaria de esclarecer que a autoridade é algo crucial no âmbito educacional. Falo de autoridade e não de autoritarismo, ou seja falo de algo que depende da confiança que um deposita no outro. A criança obedece porque confia no professor. Aprende a escrever, porque confia em quem lhe ensina. Aprende um tema, quando vê autoridade nesse tema.  

Quanto à questão da autoridade feminina, penso que a mesma faz parte daquela necessária mudança simbólica à qual nos referíamos anteriormente. Quer ver um exemplo? Muitos diziam que Margaret Tacher não era uma mulher, porque ocupava um lugar de muito poder e muita força. Isso significa que não se reconhece a capacidade da mulher para ocupar postos de poder. Uma mulher “poderosa” é difícil de digerir tanto pelos homens quanto pelas demais mulheres que a consideram como uma “traidora” em algum sentido. Homens e mulheres têm a percepção de que somos todas iguais e que por isso, não podemos ocupar posições hierarquicamente distintas, o que revela uma não autoridade. É como se fôssemos todas irmãs, uma sem autoridade em relação à outra. Quando uma mulher é poderosa, as demais sentem muita inveja e rivalizam – se com ela, porque não são capazes de reconhecer relações não simétricas com uma “igual”. As mulheres costumam  ser muito cruéis umas com as outras quando estão nessa circunstância e utilizam a linguagem masculina para massacrarem-se. O mesmo não ocorre com os homens que são capazes de admirar a outro homem e respeitá-lo como autoridade. Penso que o reconhecimento da autoridade feminina é um dos desafios mais importantes nessa mudança simbólica à qual temos nos referido constantemente.  

 

CREARMUNDOS:  E a única maneira de pensar a questão do poder é falando de hierarquia? Não se pode pensar a questão do poder feminino a partir de outra perspectiva?  

FINA BIRULÉS:  O tema hierárquico tem que ser planteado, se não há hierarquia a autoridade feminina não é reconhecida como tal. O problema com as relações de autoridade é que na prática, o poder e autoridade estão muito mesclados. Vivemos numa sociedade que confunde temor, autoritarismo e autoridade. E muitos são os que querem conseguir fazer valer seu ponto de vista através de violência, de repressão e de castigos. O que não podemos esquecer é que quem concede a autoridade é quem obedece. 

 

CREARMUNDOS: Muitos justificam que isso ocorre, porque a mulher “ não foi feita para o poder”. Parece que esse problema está diretamente relacionado com uma idéia que se tem de natureza feminina. O que você diria sobre isso?  

FINA BIRULÉS: Na Espanha, essa discussão ocupou principalmente os anos 30, por ocasião da entrada de obras alemãs que tratavam disso. Falavam do feminino como algo ligado ao sentimento, à passividade, à falta de lógica. Por causa disso, se uma mulher tinha cultura e êxito, eram chamadas de mulheres viris. Isso porque saíam do âmbito do feminino. Ou seja, saíam não apenas do espaço privado, mas também de sua própria natureza. Considero difícil teorizar sobre a natureza feminina, ainda que tenha que admitir que um corpo de mulher é muito distinto de um corpo de homem e que isso determina muito da ação de ambos no mundo.  

Lembrei –me de Hannah Arendt, que foi a primeira mulher catedrática de seu contexto. Estava onde não estavam muitas mulheres.  Como escrevia textos polêmicos nos anos 60, muitos chamavam-na de antifeminista. Uma vez, sendo entrevista lhe perguntaram: Como se sente em ser a primeira mulher a dar conferencias? E ela respondeu: Há muito tempo estou acostumada a ser uma mulher! Ou seja, era como se ela dissesse: não quero aceitar o rótulo de mulher exceção, todas as demais mulheres são capazes de estar aqui, tanto quanto eu!  

TEMA3:

Sobre mulheres pensadoras e sobre a contribuição teórica feminina

 

CREARMUNDOS:  Você diria que existe um pensamento feminino?

FINA BIRULÉS:  Platão, em seu diálogo Um Banquete, além de falar claramente da diferença entre os sexos fala da existência de filósofos grávidos: aqueles capazes de terem filhos da alma. E claro, para Platão ter filhos da alma era muito mais nobre que ter filhos corporais. Através da boca de Diotima, Platão fala com muita naturalidade dos sexos e do poder da psique feminina que é capaz de engendrar idéias e pari-las através do trabalho dos filósofos. E Nietzsche retoma esse poder de criar, de conceber. Eu sempre me surpreendo muito com essa analogia. Parece-me que os filósofos estão grávidos de uma maneira tão estranha...

Em Fedro, outro diálogo de Platão, o filósofo pare discursos belos. Ele é capaz de parir logos, conhecimento, ciência. E, para tanto tem que encontrar um corpo de um homem belo. Se não o faz, o discurso, o logos fica dentro dele. Se o faz, esses discursos saem como plumas, mas esse parto de idéias dói, porque as plumas não querem sair.

Dava o exemplo desses dois diálogos para dizer da dimensão feminina do pensamento que é apresentado por Platão. Esse pensador é “ androgínico”, enfatiza a relação entre os homens, mas não é “misógino”, não cultiva nenhum ódio às mulheres; ele apropria - se da capacidade criativa feminina e feminiza a psique do filósofo. Isso não é muito comum na Antigüidade.

 

CREARMUNDOS:  Onde estão as mulheres pensadoras? Por que em geral, os alunos só lêem o que foi produzido pelos homens?

FINA BIRULÉS: Terei que retomar à questão do poder. Pensemos através de exemplos, na Revolução Francesa, as mulheres trabalharam muito. Mas, depois que tudo se estabilizou, foram devolvidas às suas casas, saindo do cenário público.  E a negação da mulher nessa época chegou num estágio tal que inclusive voltou-se a discutir se ela deveria aprender a ler ou não. O mesmo ocorreu com a Declaração Universal dos Direitos, as mulheres foram novamente ocultadas depois que “se ganhou a luta”. Quando a ciência ficou “poderosa”, as mulheres desapareceram do cenário científico, como se nunca tivessem produzido ciência ao longo da história humana. Disso conclui-se que quando um campo teórico chega ao poder, ou quando um movimento social fica dominante, as mulheres desaparecem do cenário. O “assunto volta a ser coisa de homens”.  

Diferentemente do que muitos supõem, nem todas as mulheres passaram todos esses séculos dentro de casa, entregues ao trabalho doméstico, cito o nome de algumas delas: Aspasia de Mileto, e Hildegarda de Minden.

No ano de 1990, no seminário FILOSOFIA E GÊNERO, a pedido de alunas e alunos, me propus a estudar esse tema. Li a História das mulheres filósofas, a autora explica na introdução que pensava em fazer um pequeno artigo e acabou criando uma obra de 3 volumes. Isso porque ela supunha que não haviam existida muitas mulheres filósofas na História, afinal nunca lhe haviam apresentado. O que descobriu ao longo de sua investigação foi surpreendente: pensadoras sempre existiram! Na Antigüidade, muitas foram as pitagóricas, por exemplo. Nos séculos XII e XV existiram diversas pensadoras, muitas delas eram italianas; inclusive as humanistas foram publicadas na sua época, mas não voltaram a ser publicadas até o século XIX. Impressionante foi descobrir que jamais foram transmitidas. Isso somente passou a ocorrer com o trabalho das pensadoras do século XX.

 

CREARMUNDOS: Isso significa que as pensadoras de agora estarão mais presentes nos estudos das novas gerações?

FINA BIRULÉS: O complicado é que a situação continua igual. As mulheres escrevem, publicam, mas não são transmitidas. O meio acadêmico é ainda muito refratário à produção feminina. Por exemplo, num ciclo de conferências, em geral todos são homens, porque se supõe que será um debate com ânimo de universalidade. Se se faz o mesmo só com mulheres, supõe-se que será dirigido a um público feminino. Quando uma mulher organiza um ciclo de conferências, tem que colocar homens para conseguir transmitir seriedade em seu evento. Isso é um absurdo que ainda persiste. Esse é sem dúvida um tipo de conflito que não se resolve dando mais informação. Os homens já sabem que nós sabemos que eles sabem e nós sabemos que eles sabem que sabemos. Eles sabem o que deveriam fazer, mas não o fazem. Igualmente passa algo semelhante conosco. Estamos diante de desacordos de tal ordem, que não sabemos bem como resolvê-los. 

 

CREARMUNDOS: Parece que ocorre o mesmo com relação à dupla jornada de trabalho feminino, não?

FINA BIRULÉS: Sim, além de agüentar a mesma jornada de trabalho que os homens, seguimos trabalhando em casa como antes. E por que permitimos que isso continue assim? Por que essa situação não muda?  

CREARMUNDOS: Como você vê essa questão no âmbito político?  

FINA BIRULÉS: Os homens nos deixam no esquecimento e nós aceitamos. Continua a imagem de que as mulheres são uma “minoria” e isso não é verdade, estatisticamente somos maioria. Além disso ocupamos sempre o espaço do “ etc.” com as demais minorias: as mulheres, os de raça, os de opção sexual diferente e etc. Algum dia desses vou escrever sobre o “etc”...

Não somos minoria e não deveríamos deixar que nos tratassem como tal. São eles a minoria. Por isso, a política das cotas tem sido vista como “complicada”, porque somos um 53% de mulheres no mundo. E isso muda o peso na balança... Nos países nórdicos europeus como a Irlanda e a Finlândia, essa política de cotas vem funcionando, está muito melhor do que aqui na Espanha. Não sei como é isso no Brasil, mas é importante que não se veja as mulheres governando como se fossem exceções que necessitam pedir permissão para fazê-lo.

 

CREARMUNDOS: Retomando à produção teórica feminina e sua transmissão cultural, o que você gostaria de acrescentar?

FINA BIRULÉS:  Penso que uma coisa importante é resgatar a produção feminina no momento de apresentar a tradição cultural humana, transmitindo o que foi produzido pelas mulheres ao longo da história. É importante incluir nos programas de estudo, um trabalho de investigação sobre as mulheres e suas produções. Faltam aulas inovadoras sobre as distinções de gênero. As mulheres ainda estão como notícia e não como obra e isso é um grande problema. Para contrapor a isso, é necessário utilizar o texto das mulheres como fonte de autoridade intelectual, da mesma maneira que se usa o texto dos homens como tal.

Na filosofia a obra das mulheres ficou muito mais oculta que nos demais âmbitos do saber, porque é considerada mais abstrata e de caráter universal. Mas, como já dissemos, existiram e seguem existindo muitas filósofas que merecem ser estudadas, já que a capacidade de produzir sentido, tanto têm as mulheres, quanto os homens.

Na literatura, as mulheres estão mais reconhecidas, porque ela nunca esteve muito institucionalizada, assim puderam entrar e produzir nesse campo com maior liberdade. E isso ocorre desde a antigüidade grega com a poetisa Safo até nossos dias.

Na ciência, ficaram mais ocultas como na filosofia, principalmente nos primeiros momentos até o século XVIII. E nesse campo de saber há o agravante de que a ciência tornou-se um lugar de poder econômico, isso amplia o desaparecimento das mulheres. Mas, por exemplo, na França Darwin foi introduzido por uma mulher.  Ou seja...

 

CREARMUNDOS: Você gostaria de deixar uma mensagem final para nossos leitores e leitoras?  

FINA BIRULÉS: No âmbito da educação, as mulheres são uma grande maioria. Isso faz com que em parte seja da responsabilidade delas a transmissão de outra história, mais veraz do que a que foi passada até então. Que sintam-se responsáveis pela não ocultação do saber feminino; podem, por exemplo,  apresentar nas suas aulas, uma literatura científica produzida por mulheres. A memória é uma das formas de gerar sentido, protegendo a vida da suspeita do casual e do “sem propósito”; que as pensadoras femininas e suas produções possam ser resgatadas do esquecimento através do trabalho dos professores de jovens e crianças. 

Penso que é igualmente importante que saibamos utilizar positivamente nossa autoridade e nosso poder no trabalho educacional. Afinal, as professoras ainda são uma reconhecida fonte de autoridade. Para seguir a reflexão sobre esse tópico, sugiro a leitura do texto A crise na educação, de Hannah Arendt.

Outra coisa que considero crucial é que sigamos com o trabalho de transformação no campo simbólico. Sei que já existem muitas iniciativas  e materiais que investigam o imaginário e a linguagem, mas tudo isso ainda não foi suficientemente digerido, porque a mudança necessária não ocorreu.

E, por último, do ponto de vista político, há duas grandes questões que ainda precisam ser consideradas. A primeira é analisar as relações entre as mulheres, buscando transformar essas disputas e rivalidades impulsionadas pela inveja e pelo não reconhecimento da autoridade feminina, em outras formas relacionais mais interessantes. Precisamos encontrar saídas práticas para isso e fundar entre nós, outro tipo de relação.

A segunda questão diz respeito a uma presença pública mais afirmativa, isso serve principalmente para as mulheres com ambições políticas e parlamentárias: que ocupem os espaços de poder instituído! Chega dessa imagem de vitima agredida que não pode fazer nada. Muitas mulheres não querem  a etiqueta de feminista, porque ela traz  nas costas o peso de uma identidade de vítima, um passado de discriminação. E esse passado e essa identidade,  não é querido por elas. Que revisitemos pois o passado, buscando nele o que foi ocultado e que permite a construção de uma identidade feminina diferente dessa!

 

CREARMUNDOS:  A revista agradece a amabilidade da entrevistada, deixando de presente para ela e para os leitores a poesia Com licença poética, de Adélia Prado:

 

Quando nasci um anjo esbelto,

Desses que tocam trombeta, anunciou:

Vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

Esta espécie ainda envergonhada.

Aceito os subterfúgios que me cabem,

Sem precisar mentir.

Não sou tão feia que não possa casar,

Acho o Rio de Janeiro uma beleza e

Ora sim, ora não, creio em parto sem dor.

Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.

Inauguro linhagens, fundo reinos

-         dor não é amargura.

Minha tristeza não tem pedigree,

Já a minha vontade de alegria,

Sua raiz vai ao meu mil avô.

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou. 



[1] O TÍTULO DESSA ENTREVISTA ESTÁ INSPIRADO NUM TRECHO DA POESIA DE ADÉLIA PRADO CITADA NO FINAL DA ENTREVISTA

[2]  Espronceda é um poeta espanhol do século XIX. Sua obra é considerada uma síntese do romantismo.